Ministério Público obtém liminar para proteger prédio que serviu de prisão a mais de 70 réus do linchamento histórico de Chapecó
12 de janeiro de 2022Quem não vivenciou os acontecimentos cruéis e brutais que levaram Chapecó às manchetes nacionais nos primeiros anos da década de 1950 pode considerar o prédio de quatro andares em estado de abandono na esquina da Avenida Nereu Ramos com a Rua Benjamin Constant, no Centro de Chapecó, como um imóvel sem valor histórico e que precisa ser demolido para dar lugar ao que se costuma chamar de progresso. Por isso, preservar ao menos as fachadas dessa edificação, segundo os historiadores, é uma forma de lembrar “às gerações futuras as consequências de se fazer justiça com as próprias mãos”.
Argumentando pelo valor histórico do prédio que serviu de prisão para mais de 70 réus denunciados pelo linchamento de quatro homens acusados de terem incendiado a igreja católica da cidade em 1950, a 9ª Promotoria de Justiça da Comarca de Chapecó obteve da Justiça uma liminar que proíbe os proprietários do imóvel e o Município de efetuarem qualquer ação de intervenção que ameace as estruturas da edificação ou de promoverem a sua demolição enquanto são tomadas as providências para a incorporação do prédio ao Patrimônio Histórico municipal e o seu consequente tombamento.
O prédio, conforme explica o Ministério Público na ação civil pública com pedido liminar, serviu como prisão dos acusados do Linchamento de Chapecó, entre os anos de 1950 e 1952, e sediou as audiências de instrução da Ação Penal n. 183/1950, que se tornou histórica na Justiça catarinense, por tudo que envolveu o caso.
A decisão judicial determina à empresa proprietária do edifício, a Krappioos Terrace Restaurante LTDA, “a proibição de efetuar e autorizar qualquer tipo de interferência no imóvel”, além de obrigar a instalação de “duas placas visíveis em ambas as fachadas, com os seguintes dizeres: `Proibidas intervenções neste imóvel por força de determinação judicial’, indicando o número dos autos e que se trata de pedido de tombamento, sob pena de multa no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para cada descumprimento, exigível a partir do ato irregular (art. 11 da Lei nº 7.347/85)”.
Ao Município, a liminar impõe medidas semelhantes, como a suspensão de “qualquer eventual procedimento de demolição, desmontagem, retirada de partes do imóvel, reformas ou qualquer outra forma de intervenção interna ou externa”, também sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para cada descumprimento.
Na ação judicial (ACP 50325027220218240018), o Promotor de Justiça Willian Valer sustenta, com base em vasto material documental, como reportagens da época, pesquisas acadêmicas e obras de ficção e de não ficção – locais, regionais e nacionais -, o valor histórico e cultural do imóvel, que foi sede do Moinho Santo Antônio e chegou a ser o prédio mais alto da cidade na época de sua construção.
Foi justamente por suas dimensões e área construída que a edificação acabou sendo designada pela Justiça para uma finalidade a qual jamais os seus projetistas e proprietários originais poderiam imaginar que fosse destinada, mas que lhe garantiu um lugar na História, não apenas do município, mas do país: serviu de presídio para 71 presos provisórios denunciados por um crime que vitimou quatro homens e que ficou conhecido nacionalmente como “O Linchamento de Chapecó”.
Corrupção, falsas acusações, torturas e barbárie
Se o papel desempenhado pelo edifício de quatro andares lhe garante um lugar na História, com “H” maiúsculo, da cidade de Chapecó, a história do crime, marcada por fortes cenas de crueldade e barbárie, atrai até hoje, além de historiadores, pesquisadores e acadêmicos, documentaristas e autores de ficção.
O ecônomo de um dos clubes sociais mais importantes da cidade na época e o irmão dele que tentou salvá-lo, um Delegado de Polícia corrupto, dois “forasteiros” suspeitos de causar pequenos incêndios criminosos para praticar furtos em residências, e outros mais de 70 moradores e chefes de família de Chapecó são os personagens dessa história sangrenta e cruel.
Todos os fatos históricos constam da Ação Civil Pública n. 5032502-72.2021.8.24.0018, ajuizada pelo MPSC mais de 70 anos depois dos acontecimentos, com o objetivo de garantir a memória dessa tragédia para que nunca mais algo semelhante possa se repetir. A ação pode ser acessada neste link, nas consultas processuais do MPSC.
A história teve início bem antes do linchamento. Entre a terça-feira e quarta-feira de Carnaval do ano de 1950, o Clube Recreativo Chapecoense foi incendiado. O ecônomo do clube foi tido como um dos suspeitos, pois tinha seguro das bebidas e do mobiliário. E o Delegado de Polícia da época subornou, sem sucesso, o ecônomo, que se recusou a pagar propina para que houvesse desfecho favorável da investigação em seu favor.
A revolta da população contra os crimes chegou ao máximo quando a igreja católica no Centro da cidade foi incendiada, em outubro daquele ano.
O Delegado de Polícia, quando então conseguiu a prisão de dois suspeitos, logo percebeu a oportunidade de relacionar o ecônomo do Clube Recreativo Chapecoense a eles e, consequentemente, aos crimes que acirravam os ânimos da população, já que estavam hospedados no mesmo hotel e porque o ecônomo era amigo de um dos suspeitos. Com isso, além de vingar-se do empresário, o Delegado de Polícia viu, igualmente, a oportunidade de livrar-se da pressão para resolver a série de crimes.
No lugar de apurar os fatos, o Delegado de Polícia optou por torturar os três homens, até que um dos suspeitos, cedendo às torturas e notando ser esta a intenção do Delegado de Polícia, delatou o ecônomo e o acusou de participação no incêndio da igreja.
Quando tomou ciência da prisão, o irmão do ecônomo deixou a cidade em que morava no Rio Grande do Sul para auxiliá-lo. Contudo, também foi preso e mantido incomunicável pelo Delegado de Polícia. Outro irmão do ecônomo, entretanto, também veio até Chapecó e pediu ao Juiz proteção a si e aos seus irmãos, rogando ainda para que os presos fossem transferidos para a comarca vizinha de Joaçaba.
Arrependido, o delator do ecônomo pediu perdão a ele por tê-lo acusado falsamente. E o Delegado de Polícia, ao saber do fato, negou-se a registrar a retratação do suspeito em depoimento.
Quando tomou ciência do pedido de transferência de presos, o Delegado de Polícia convocou a população para uma reunião em que a incitou a tomar a cadeia para retirar os presos e os linchar.
Em 17 de outubro de 1950, houve o linchamento na cadeia de Chapecó. O ecônomo, seu irmão e os outros dois suspeitos foram atacados com tiros e golpes de facão. Depois de mortos, foram empilhados aos fundos da cadeia, sendo após queimados em uma fogueira.
Ao todo, 83 pessoas foram denunciadas e processadas. O próprio Delegado de Polícia e mais 70 homens foram presos preventivamente, mas não havia lugar para custódia de tantos detentos. Diante da falta de lugar adequado, aquele que era o único prédio da cidade em condições de tornar-se imediatamente um presídio era a sede do Moinho Santo Antônio.
O crime e o julgamento chamaram a atenção da imprensa nacional. Várias obras acadêmicas, documentais e de ficção baseadas nesses fatos já foram escritas. Quem quiser conhecer o processo pode acessar todos os documentos da Ação Penal n. 183/1950 em uma página na internet organizada pelo Memorial do MPSC (link).
Preservar a memória para documentar a evolução da Justiça
Como salienta o Promotor de Justiça Willian Valer na ação, historiadores e até mesmo a jurisprudência dos tribunais superiores explicam que o valor histórico de um imóvel não pode ser avaliado apenas pela arquitetura ou beleza estética de uma edificação.
Na ação, Valer aponta que “há evidente necessidade de valorizar referenciais históricos. Eles são testemunhos não apenas da trajetória […], mas também da evolução do pensamento, da legislação”.
Como atesta a historiadora Mônica Hass, doutora em Sociologia Política e autora da obra “O linchamento que muitos querem esquecer”, citada pelo Promotor de Justiça, apesar “das divergências que possam haver sobre o imóvel, preservá-lo é uma forma de alerta para as gerações futuras desta cidade sobre as consequências de se fazer justiça com as próprias mãos”.
Com a proporção adequada, o Promotor de Justiça compara o caso com a preservação das ruínas do Muro de Berlin e dos campos de concentração, na Alemanha, que tem como objetivo resguardar as cicatrizes das feridas que marcaram a história e para que os sofrimentos causados por ações que nunca deveriam ter sido praticadas não sejam esquecidas e repetidas: “Aqui, o Moinho é o retrato da cicatriz chapecoense”, conclui.
Rádio MPSC
Confira na Entrevista da Semana a história do Moinho Santo Antônio, a maior edificação de Chapecó na década de 50. Na época, a Justiça determinou que ela fosse transformada em cadeia provisória para deter todos os presos provisórios pelo linchamento de quatro homens acusados de terem incendiado a igreja católica da cidade – dois deles injustamente. Saiba mais na entrevista com o Promotor de Justiça Willian Valer.
Com informações MPSC